O “gabiru vagabundo”

O celular de Lulih tocou por volta das 3h da madrugada do dia 12 de novembro. Todos sabem que esta é a “hora do diabo”. Nenhum telefonema a esta hora traz boa notícia. “Gino morreu”, disse ela ao desligar o celular. Sem falarmos mais nada, levantamos da cama, nos vestimos rápido e seguimos para o Hospital das Clínicas. Deitado sobre a fria pedra de mármore do necrotério, o corpo esquálido de ventre projetado repousava – parecia que dormia, como em tantas madrugadas que deve ter adormecido embriagado. Agora, embebido em clorofórmio, aguardava alguém da família para assinar os papeis da remoção para a funerária e, dali, para o velório e, por fim, o cemitério. Não havia ninguém da família. Do lado de fora do necrotério, de cócoras e em pranto silencioso, apenas a figura magra, sofrida de tantas noites sem dormir, da poeta Pat Andrade. Foi ela que, nos últimos tempos, cuidou de Gino até o último momento. Eram amigos de longa data, assim como Lulih. Eu não fui seu amigo. Não deu tempo…

A primeira vez que o vi foram três anos antes, no dia 22 de agosto, quando eu estava em cima do palco fazendo um show em homenagem aos 11 anos da morte de Raul Seixas. No meio do show, surgiu por entre as mesas do bar um “maluco beleza” trajando uma longa túnica preta e tênis brancos sem meia. Os cabelos grisalhos cacheados até os ombros, dançando de braços abertos e fazendo coro à música que eu cantava. “Sim, eu sou um imã pra gente doida”, foi só o que pude pensar na hora. Quando o show acabou, aquela figura esquisita que eu nunca tinha visto na vida já havia desaparecido e eu só reencontraria quase um ano depois, por volta de junho de 2011, na casa do poeta Aroldo Pedrosa, quando o reconheci no mesmo instante em que fomos apresentados um ao outro por Lulih – na época, minha namorada há pouco mais de um mês.

Depois disso, foram poucas as vezes que tive contato com Gino. Mas Lulih sempre falava dele como um amigo querido de muitos anos e aventuras.

Quando adoeceu – não sei bem do quê – eu e Lulih já estávamos casados e fomos visitá-lo no hospital. Algumas noites antes de ser internado na UTI, passamos pela sua casa e fomos dar uma volta de carro. Tomamos um sorvete – já que qualquer hipótese de bebida estava terminantemente proibida – e ainda tivemos o desprazer de sermos testemunha da indiferença de alguns “velhos amigos” que ele foi visitar e que, àquela hora da noite, não se dignaram sequer a atender a porta – se escondiam, por certo, para não terem que dar uns trocados “praquele vagabundo”…

Pois é, o “gabiru vagabundo” tinha morrido – agora aqueles que não lhes abriram a porta de suas casas podiam dormir o sono dos hipócritas sem serem perturbados…

Enquanto isso, eu e Lulih estávamos aos berros, no portão da casa de um de seus irmãos, o Caju, às 4h da madrugada, tentando encontrar alguém de sua família que fosse providenciar os trâmites de liberação do corpo. Depois de deixar o Caju no hospital, seguimos junto com Pat Andrade para a uma secretaria do Estado para tentar conseguir um caixão, pois a família não tinha condições de comprar. E aquilo tudo me fez pensar como somos nada quando já não podemos oferecer nada para os outros. O maluco com alma de artista, presidente vitalício do Clube do Vinil de Macapá, que encheu de vida a festa de tanta gente, agora estava ali, seminu, enrolado num lençol de hospital dos pés à cabeça, precisando de um caixão de indigente para ter um mínimo de dignidade em seu próprio enterro dali a algumas horas.

Como eu disse antes, nunca fui seu amigo, pois não deu tempo. Nunca o conheci de verdade – mas também talvez nunca ninguém tenha realmente o conhecido. Eu só sei que depois daquela madrugada fria; depois de passar o dia em seu velório escutando as histórias dos amigos sendo contadas às gargalhadas e lágrimas ao som das músicas dos vinis que ele gostava; e depois de seu enterro na terra árida do cemitério, a certeza que carrego nesses 10 anos “passados, presentes, vividos entre o sonho e o som” é a de que, afinal, ele tinha razão quando repetia a frase que mais gostava: “Besta é tu, besta é tu. Não viver nesse mundo”…

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